"Foto do bando feita a exatamente 86 anos atrás, na cidade de Limoeiro do Norte, Ceará, no dia 16 de junho de 1927. O original desta foto me foi presenteada pelo meu avô materno no ano de 1952. Ele, como fazendeiro e tendo vivido toda a sua existência na zona rural, era um grande estudioso de LAMPIÃO a quem conheceu pessoalmente."
Edmilson Rodrigues do Ó
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Não conheço ninguém que seja tão nordestino como eu.
Venho de duas vertentes visceralmente nordestinas: meu pai, sertanejo alagoano da Ribeira do Ipanema, afluente do São Francisco; minha mãe, legítima sertaneja, nativa das terras do Cariri da Paraiba, centro do polígono da seca; dos carrascais e dos espinhos, das baraúnas, dos facheiros, da macambira, do rompe-gibão; das lindas e frias noites de lua-cheia.
Talvez daí o interesse natural que desde cedo em mim se manifestou por essas coisas que falam de perto dos costumes, da vida, da história, principalmente da história, tão rica e sofrida história desta nossa terra e dos que a fizeram através dos tempos.
Nasci em Campina Grande, onde vivi a adolescência e em seguida fui residir no Recife, pela necessidade de ingressar no curso superior então inexistente na nossa cidade. E apesar de hoje residir em João Pessoa, jamais perdi o contato com a minha cidade e os meus velhos amigos, com quem me encontro frequentemente para boas conversas e bons whiskys.
Aos 14 anos conseguí ler Os Sertões, depois de cinco ou seis tentativas. E ficou para sempre carimbada em meu pensamento a narrativa dos episódios épicos maravilhosos, da coragem, da decisão, do estoicismo, da grandeza daquele bronco Mestre Conselheiro, herói tosco, pobre, mas detentor de uma força espiritual monumental, indestrutível e amedrontadora.
Daí para as histórias do cangaço foi um passo.
Ligado ao pessoal da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais em Recife, um dia recebo um convite do escritor Frederico Pernambucano de Melo, presidente daquela fundação, para participar de uma mesa de debates sobre o tema cangaço, com a presença de uma mulher, ex-cangaceira, chamada SILA, testemunha presencial e participante daquele episódio crucial do cangaço ao qual se denominou como “a ultima batalha” contra o bando de Lampião, em que o bandido tombou pelas balas da volante alagoana do tenente João Bezerra.
Naquela noite, até bem tarde, estivemos debatendo, conversando, perguntando, principalmente perguntando muito a essa preciosa protagonista desse episódio fundamental, todos aquêles detalhes que muitas vezes são esquecidos nas narrativas que nos chegaram às mãos até então.
E dalí nasceu também uma amizade com aquela bela sertaneja simples, modelo fiel da nordestina pobre, nascida numa época de costumes primitivos e absoluta ausência de um Estado que assegurasse o mínimo de cidadania numa região varrida pela seca, a violência e a miséria.
Em cerca de uma centena de obras que tenho na minha estante sobre o cangaço eu, não sei por quê, sempre me detenho no episódio que narra a dificuldade da tropa de assalto para embarcar à noite e descer o Rio São Francisco, à partir da cidade ribeirinha de Piranhas,no Estado de Alagoas numa improvisada embarcação, em demanda do local aonde se escondia o bando de Lampião e todo o seu estado-maior, para a batalha final.
Todas as vezes que releio alguma dessas narrativas, sinto como se me transportasse para aquêle ambiente; e, pondo-me no meio deles, procuro imaginar e ao mesmo tempo analisar o estado de espírito daqueles militares, semi-analfabetos, pobres, mal nutridos, amedrontados diante da missão gigantesca e cheia de perigos a que estavam implacavelmente ligados, até o fim das suas vidas. Que sensação apavorante, quanta expectativa, o medo estampado naquelas faces mal-tratadas, o frio de uma noite invernosa, silenciosa, tétrica naquela lenta e incerta viagem rio abaixo.
Isso me impressiona até hoje. E nunca me saiu da cabeça a idéia de um dia, por minha própria conta, refazer exatamente aquêle itinerário. Para mim aquilo chegou a ser quase uma obsessão.Ah, eu haveria sim, de repetir aquela saga. Descer o rio até a praia onde se deu o desembarque. Eu queria sentir na pele ao menos a grandeza da paisagem.
A VIAGEM
Daquêle encontro na Fundação Joaquim Nabuco restou uma boa amizade com Sila, que dalí por diante passou a ser minha hóspede, nas vezes em que vinha ao Recife, geralmente convidada para eventos regionais e palestras, principalmente junto às prefeituras municipais e às universidades , onde invariavelmente os estudantes, curiosos acerca dos assuntos do cangaço, adoravam ouvir aquêle depoimento feito em linguagem simples e despojada, o que inevitavelmente criava um clima de empatia, animado, contagiante e entusiasmante acima de tudo. Os estudantes adoravam-na. E ela aproveitava para fazer noites de autógrafos de um livro biográfico que recentemente ditara para um escritor paulista.
Um dia convidei-a para conhecer a minha cidade natal, Campina Grande. E logo nessa primeira visita ela ficou apaixonada pela cidade. Foi mesmo amor à primeira vista. A tal ponto que, com o meu próprio incentivo, logo mostrou o desejo de arrendar uma barraquinha na época do Maior São João do Mundo, para comercializar pratos típicos, no preparo dos quais era uma verdadeira mestra, como também comercializar os famosos embornais usados pelos cangaceiros, que ela bordava como ninguém e, evidentemente, atrair com a sua história, toda a população que certamente afluiria ao seu quiosque. Visitei o então Secretário de Turismo de Campina Grande, Dr. Gleriston Lucena a quem narrei o projeto.Êle mostrou-se receptivo a idéia e disse-me não haver nenhum problema. Sería até proveitoso para o turismo da cidade. Como a essa altura o Dr. João Dantas já estava entusiàsticamente integrado ao projeto, ficou a seu cargo as tratativas para o caso, uma vez que eu tinha viagem marcada para o Sul.
Residindo em João Pessoa, a partir de 1996, hospedei-a em minha casa três ou quatro vezes; e através do saudoso amigo Dr. Amauri Vasconcelos, e do Dr. João Dantas, levei-a para palestras em Campina Grande, junto ao meio universitário, como também em João Pessoa, onde a acompanheI; ela sempre fazendo muito sucesso.
Uma noite, já bem tarde, recebo um seu telefonema. Muito contente com o resultado do lançamento de mais um livro, SILA, MEMÓRIAS DE GUERRA E PAZ, desta vez editado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco com patrocinio da Petrobras.
“Roberto, dizia-me, estou enviando de cortezía uns exemplares do novo livro para você.Na página 89 cito o seu nome com muito prazer. Nunca lhe falei, mas desde o dia em que você me levou a Campina Grande, aquela sua cidade maravilhosa, parece que as portas se abriram para mim. Várias Universidades , do Ceará, do Rio Grande do Norte, Piauí, e Maranhão começaram a me convidar para palestras e o certo é que estou com agenda cheia. Você foi o meu anjo desde aquele dia. Muito obrigada, mais uma vez”.
Mas aquela idéia de refazer o trajeto da força alagoana continuava me perseguindo.E nada melhor--- pensei eu --- do que agora, na companhia de alguém que protagonizou o episódio.
Expliquei a Sila o meu desejo e a minha curiosidade. Então, convidei-a para me acompanhar; e ela, prontamente, atendeu ao meu convite.
Na verdade Sila não viveu o auge do cangaço, é bom que se diga; pois, jovem que era, só pelo fim da década de 30 ingressou nas lutas. Digo mais, que apenas por um período de tempo relativamente curto ela participou dos combates; mas a sua presença junto ao casal Lampião-Maria Bonita, na sua última noite, lhe confere uma importância fundamental, pois que foi vivida na intimidade do casal, e ela como ouvinte atenta das derradeiras palavras e lamentos da rainha dos sertões.
Partimos então do Recife numa madrugada chuvosa e convidamos para nos acompanhar o casal Paulo Marques, então pro-reitor da Universidade Rural de Pernambuco, sociólogo e grande estudioso da saga do cangaço. Nosso destino: a margem esquerda do Rio São Francisco, precisamente a cidade de Piranhas, um romântico lugarejo, cheio de beleza e história, engastado em pleno canyon do médio São Francisco, onde os Estados de Alagoas e Sergipe se dividem.
A ROMANTICA PIRANHAS
Rompemos esses 450 quilometros de percurso em cerca de 6 horas, em meu automóvel, com paradas para lanches, conversas sertanejas e, principalmente evocações de lugares familiares à memória da ex-cangaceira. Em Santana do Ipanema revi parentes por parte do meu pai, fomos festivamente homenageados e seguimos em frente.
Ao chegarmos finalmente na cidade ribeirinha, saí desesperado a procura de uma embarcação para enfrentarmos a empreitada de descida do rio; e não foi fácil a tarefa pois que as rústicas “canoas” como são chamadas aquelas embarcações à vela, típicas da região do médio São Francisco inexistiam na ocasião, pelo que tive de contratar um barco de carga,movido a diesel com tripulação de 4 homens, o que encareceu bastante a jornada de navegação. Mas, tudo bem, tudo maravilhoso, pois o que me alegrava era exatamente a realização daquele meu sonho antigo, acalentado durante décadas e que finalmente haveria de se materializar e, principalmente, de uma forma especial, na companhia de uma testemunha presencial do grande assalto.
O GRANDE RIO
Embarcamos e começamos a descida do rio. A visão é majestosa, incomum, misteriosa. A calha por onde navegamos esmaga-se entre penhascos monumentais ; e as curvas sinuosas que faz o caudal, transformam o percurso numa aventura diferente e grandiosa , por entre as muralhas gigantescas e amedrontadoras. Cada metro navegado naquelas águas verde-escuras esconde algum mistério não se sabe bem de quê, nem de onde.
Eu não cansava de contemplar aquela paisagem tão conhecida dos personagens do passado, e nela inseria os meus sonhos, a minha imaginação quase infantil, a minha criatividade. E me via como um soldado amedrontado descendo o rio para a ultima batalha.
NA PRÔA DA EMBARCAÇÃO
Sila, na proa da embarcação, cabelos açoitados pelo vento, erguia o seu olhar para aquelas muralhas gigantescas e se deixava sonhar, como se o tempo tivesse voltado. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e ela, vaidosa, com um lenço procurava dissimular a sua emoção. Tirava os óculos, enxugava as lágrimas e voltava a sonhar.Às vezes focava o seu olhar nas águas do rio, como se quisesse conversar com a natureza e mandar alguma mensagem para o fundo das águas.
Navegávamos a baixa velocidade em virtude de rochas que em alguns pontos daquele trecho do rio afloram a superfície, motivo pelo qual só bons e experientes condutores com amplo conhecimento do trecho , se atreviam a conduzir embarcações daquele porte.
Quase uma hora durou a viagem; até o momento em que os tripulantes, conhecedores de toda a região ancoraram numa praia à margem direita do grande rio.Aí aportamos, para logo iniciarmos, a pé, a subida da grande montanha. Na frente, três dos experientes tripulantes abrindo caminho à foice e facão, rompendo a vegetação, verdadeira muralha de cactos de toda espécie, da jurema ao rompe-gibão, das urtigas traiçoeiras aos quipás e unhas-de-gato; enfim, uma variadissima flora, boa parte ainda desconhecida para mim. Logo atrás em fila indiana, vínhamos nós, sempre revezando, passando um à frente do outro, dependendo de quem caísse, vitima dos tropeços nas pedras do caminho inclinadíssimo e tortuoso. O calor era intenso e as dificuldades da caminhada aumentavam a cada metro. O clima abafado e sufocante nos tirava o ar e o suor ensopava os nossos corpos. Cerca de 1 hora demorou essa viagem exaustiva e desgastante montanha acima, até que num determinado momento os guias pararam e nos avisaram que abririam uma clareira na mata afim de que pudéssemos ter acesso a gruta. Assim foi feito.
AQUI O HOMEM MORREU
De repente descortina-se diante de nós um cenário diferente: um mundo feito de rochas pontiagudas dos mais variados formatos e tamanhos, sombreadas por gigantescos e centenários pés de anJicos, que dão ao lugar um aspecto de cenário teatral, escuro, misterioso, solene. Parece uma tela de pintura antiga. O silencio profundo aumentava a sensação de coisa misteriosa, mágica,esquisita. E lá num canto, fixada numa das rochas,ao pé de uma cruz, uma lápide de mármore onde se lê uma mensagem anônima de homenagem aos que ali tombaram, com seus respectivos nomes.
UMA SINGELA ORAÇÃO
Sila aproxima-se daquele tosco monumento lê vagarosamente a mensagem de homenagem gravada na rocha e começa a chorar. Um choro sentido, emocionado, cheio de dor. Eu a seguro pelo braço e procuro afastá-la dalí, comovido com a sua emoção. Sentamo-nos então ao abrigo de uma grande pedra, em baixo da qual Maria Bonita, segundo Sila, foi degolada viva. Para todos os locais onde voltávamos a vista, Sila rememorava algum fato: ora a pedra de onde ela, juntamente com Maria Bonita enxergou um brilho de luz na noite escura, ora o local onde estavam ela e o marido no interior da sua tolda, de onde, surpreendida pela fuzilaria, correu sem sequer calçar suas sandálias, o que lhe deixou os pés feridos e ensangüentados; mais na frente um pequeno tanque natural cavado na rocha onde o primeiro cangaceiro foi surpreendido apanhando água e sumariamente fuzilado; mais atrás o recanto onde ficou para sempre um seu irmão, o Mergulhão, tão animado, tão carinhoso que era; por traz dos anjiqueiros a brecha por onde ela com os demais conseguiram escapar; finalmente o local exato em que Lampião armara a sua tolda e de onde sequer conseguiu sair para responder ao ataque fulminante. Alí, o grande comandante, o herói dos sertões, o cavaleiro do desespero, como lhe chamaram então, fora abatido como uma ave no ninho: indefeso, frágil, exatamente da forma como ele nunca desejara morrer. Tudo naquele lugar lhe era familiar. Era como se ela retornasse no tempo e se re-inserisse naquele cenário. Tudo muito emocionante, comovente e inesquecível.Precisamente do local onde Lampião foi baleado, apanhei três pequenas pedras e as coloquei no bolso, para servirem de lembrança daquele lugar. Guardo-as comigo até hoje.
TRISTES EVOCAÇÕES
Permanecemos ali, como se estivéssemos hipnotizados, por quase 1 hora, quando finalmente minha mulher propôs que todos se reunissem em torno do pedestal e rezássemos em voz alta uma oração em homenagem aos infelizes que ali tombaram. Em seguida começamos vagarosamente a nos afastar do local, agora com um solene e emocionante respeito. Então iniciamos a viagem de descida da montanha. Sila, ainda compungida, chorava baixinho. Enquanto perfazíamos todo aquêle trajeto de descida, avistávamos lá embaixo, soberbo e silencioso o velho Rio São Francisco; e nos afastávamos devagar daquele lugar misterioso. E eu, tal qual uma criança, não conseguia a partir daqueles momentos, esquecer aquela aventura verdadeiramente fascinante que ficou na minha memória para sempre.
O sol já se escondera quando embarcamos de volta. E navegamos durante quase o resto do trajeto rio-acima, em plena escuridão, contemplando do nosso barco aquelas luzes fraquinhas nas margens do rio, indicativas da existência de vida.
Pernoitamos na cidade de Paulo Afonso e na madrugada seguinte rumamos para a cidade de Poço Redondo, já no Estado de Sergipe, de grande significação para mim, pois, além de ser o berço de nascimento de Sila, foi, na época do cangaço, a cidade que mais contribuiu para a formação dos contingentes cangaceiros, através de seus filhos, rapazes e moças da cidade, muitos ainda adolescentes, como foi o caso de Sila, outros casados e com suas mulheres, alguns filhos de famílias importantes da cidade, tudo como se o cangaço fosse uma atividade, digamos, esportiva.
Explica-se: naqueles confins do mundo, onde as noticias não chegavam, reinava absoluto, um exército diferente, de homens valentes, desafiadores, ricos, fortes, vestidos de forma extravagante,chapéus de aba virada, corajosos, ostentando jóias preciosas pelo corpo e temidos por todas as populações. Tudo isso em caráter ” oficioso” , pois que, apesar de perseguidos pelas policias de todo o Nordeste, desafiavam-nas abertamente chamando-as para as lutas, tal qual guerreiros de um mundo encantado, diferente, surreal, onde Deus era o Padim Cicero, e esse mesmo Deus os abençoara; e mais, conferira-lhes patentes de oficiais do chamado Exército Patriótico, criado pelo governo federal, imagine, para defender a Patria da ameaça comunista; e assim transformara-os também em defensores da Pátria.
Tudo isso confundia aquela juventude sertaneja desavisada, principalmente as adolescentes, que facilmente se apaixonavam por aquêles belos legionários e partiam com eles, em busca de emoções. Foi assim com Sila e com várias amigas suas, todas nascidas e criadas ali em Poço Redondo, às margens do São Francisco.
Ultima remanescente daqueles grupos, ela visitava vez por outra a sua querida cidade, onde era recebida como uma raínha. Nessa viagem conosco ela foi homenageada pelo prefeito da cidade, em casa de quem almoçamos. Varias pessoas foram vê-la, inclusive um seu irmão, que permaneceu na luta da agricultura por toda a vida, e nunca saiu da sua querida cidade.
Ela circulava pela pequena cidade e revia os lugares aonde passou parte da sua juventude. Observava a pracinha,onde no passado passeava com as amigas, as casas pobres que ainda resistiam a ação do tempo e que tiveram alguma significação na sua vida. Olhava aquilo tudo com um ar de tristeza e saudade.Parava, fixava o olhar para o alto e deixava as lágrimas lhe molharem a face.
De Poço Redondo seguimos para Aracajú, onde Sila mantinha um pequeno apartamento, e ali encontramos o seu filho Wilson, fotógrafo profissional em São Paulo. Alí pernoitamos e no dia seguinte empreendemos a viagem de volta ao Recife.
SILA
Sila não teve um casamento feliz. E nem podia ser: seu marido era um homem rude, primário, vítima como ela, da pobreza de uma região. E as feridas ficaram pela vida à fora, desde o primeiro encontro de amor com o seu violento companheiro quando foi estuprada .Ela, como toda honrada sertaneja, sujeitava-se a minimizar as grosserias contra si e seguia criando os
HOMENAGEM DO PREFEITO
seus filhos, todos êles pessoas do bem, integradas a vida social e excelentes profissionais. Sofreu terrivelmente com a morte do seu filho mais velho, num acidente de carro em Santos, e jamais conseguiu se recuperar desse golpe. Mas cumpriu integralmente a sua missão com a maior dignidade. Quedou-se ao lado do pai dos seus filhos até o seu respiro final.
Ela detestava a mentira, o engodo, a dubiedade. Era rudemente positiva.
Entrou no cangaço por mera imprevisão sobre o futuro que a sua vida errante lhe podia reservar. Jamais cometeu uma perversidade com alguém, mesmo nos tempos brabos da juventude, quando seu marido era envolvido nas lutas do cangaço e ela teve de reprimir as ameaças de morte que rondavam sua vida, em algumas vezes usando as armas de fogo.
Um dia recebo um telefonema de uma emissora de São Paulo que preparava uma festa de homenagem a Sila; e, a seu pedido, solicitava que eu desse um testemunho sobre a sua pessoa, para ser lido na ocasião. Meio sem jeito, mandei-lhe, entre outras, estas palavras via fax: ...“ .. Você, ao lado do seu companheiro, caminhou pelas caatingas do Nordeste; galgou as suas serras, desbravou suas planícies, percorreu os seus varjados, ocultou-se em seus desertos, e deixou escrita nas suas pegadas a mais autentica página da epopéia nordestina. Porisso afirmo com a mais absoluta convicção: quanto mais pobre a vida que lhe empurrou para a luta do cangaço, mais rica a História que você escreveu para o futuro”. Depois me disseram que ela mesma leu a mensagem, chorando.
Conservou na velhice os traços de beleza agreste da juventude, quando era cantada nos versos dos poetas de cordéis e repentistas como uma das mais formosas cangaceiras que o sertão já viu. “De Lampião quero Maria, de Sereno eu quero Sila” versejavam os poetas populares e cantavam os violeiros nas suas pelejas magistrais desde a Bahia até os confins do Maranhão. E no imaginário popular falava-se na imagem de uma sereia que nas noites de luar emergia das profundezas do Rio São Francisco e encantava os pescadores. Era Sila, quase uma lenda sertaneja.
Isso constatamos quando, ao embarcarmos para a descida do rio, aproximou-se de nós um velhinho simpático, vivido e criado à beira do rio, de onde, pescando, tirava o seu sustento hà quase 80 anos. Perguntou: “ Seu doutor, me desculpe a liberdade; mas essa mulher que está aí com o senhor não é a Sila de Zé Sereno?” Diante da minha resposta afirmativa ele, chorando de emoção, afirma: “ Foi a mais linda cangaceira que o sertão já viu. Eu era rapazinho e a vi uma vez atravessar o rio para Sergipe. Era uma santa de tanta beleza”. Aqui tinha um coronel muito rico que naquele tempo dizia pra todo mundo que daria sua fortuna para tomar a Sila do Zé Sereno”. Eu então chamei Sila que aproximando-se do velhinho lhe deu um beijo carinhoso na face. O pobre pescador tremia muito e as lágrimas corriam-lhe nas faces. Foi uma cena inesquecível.
CONVERSANDO COM O FILHO WILSON
Sila Interessava-se pela vida moderna e procurava sempre se atualizar acerca de todos os assuntos, desde a moda até as noticias do mundo político. Se, ao se expressar algumas vezes tropeçava na busca das palavras adequadas, compensava a carência através de uma expressão facial limpa, convincente, que comovía e agradava a todos. Fumava moderadamente, tomava algumas caipirinhas e era adorada pela juventude, principalmente os universitários.
Não perdia uma festinha de forró; mas adorava mesmo aquêle forrozinho simples, singelo, com sanfona, zabumba e triangulo, ou seja, o legítimo pé-de-serra mesmo, como hoje se chama; e a dança era um dos divertimentos que mais a faziam feliz, oportunidade em que voltava aos tempos da sua juventude lá na beira do São Francisco, relembrando seus amigos e parentes que se foram.
Em São Paulo, onde sempre morou, trabalhou em varias atividades, desde costureira do setor de teatro da Rede Bandeirantes de TV, até como secretária da atriz Regina Duarte.
INTEGRADA A VIDA SOCIAL
Conservava os hábitos sertanejos : educou os filhos na cartilha sertaneja: tomando a benção, tratando pai e mãe de senhor e senhora.
Certa vez visitou-me em Recife e expressou sua revolta: é que no fim da semana que passara,a convite de uma prefeitura do interior do seu estado, Sergipe, viajara para um evento regional e uma feira de artesanato, onde iria fazer uma palestra. Em sua companhia, no automóvel da prefeitura viajavam: uma cantora nordestina famosíssima e premiadíssima que também iria se apresentar e mais uma jornalista que cobriria o evento. Iam todos conversando animadamente quando, ao cair da noite fez-se extranho silencio dentro do carro. Sila então, ocupando o lugar do passageiro na frente do veículo voltou-se para o banco de trás, quando flagrou as duas damas abraçadas num beijo lascivo e apaixonado. ” Tomei um enorme susto e pensei em mandar parar o carro e pô-las para fora. Mas em seguida lembrei que elas eram duas e bem poderiam me pôr para fora no meio da estrada deserta. Assim preferi silenciar. Ao chegarmos na cidade chamei o prefeito e apenas lhe disse que queria voltar só. Êle me atendeu. E as duas, tal qual duas pombinhas, danaram-se por aí,” contou-me ela. “ E se Lampião visse isso, Sila”? Perguntei. “ Lá no sertão ninguém sabia nem que isso existia, Roberto. .Êle, seguramente, não admitiria isso”, respondeu-me.
“Sila, a pessoa de Lampião ainda é um enigma. Ninguém sabe como ele era realmente, a sua altura, o seu peso, a sua voz, o seu jeito, o seu humor, a sua forma de tratar, enfim, você tem como me informar”?
Perguntei-lhe.
E ela:” Lampião tinha exatamente o seu tipo, Roberto”. (Naquela época os meus 1,76m carregavam saudosos e inesquecíveis 74 quilos). “Êle falava muito pouco. A sua voz não era grossa e grave, como a sua aparência sujería. Meio fina e fanhosa. Não ria com facilidade, mas era uma pessoa alegre e se comunicava bem com os que lhe eram próximos. Agora, a grande característica era o seu poder de liderar. As pessoas, ao vê-lo, parece que diminuíam de tamanho e ele era uma espécie de pai. Imprimia um respeito indiscutível. Só para você ter uma idéia, Maria, sua mulher, não fumava na sua presença”. Escondía o cigarro tão logo sentia a sua aproximação, tal qual uma criança diante do velho pai”.
“E Maria Bonita, Sila”? Como era? Era bonita mesmo, como sujere o nome? “ Olhe Roberto, você não sabe esse tipo de sertaneja quase baixinha, da bunda batida? Pois ela era assim. Era apenas engraçadinha. Igual a milhares de caboclas que habitam esse sertão. Não tinha nada de fora-do-comum, como se apregoa. Tem mais: esse nome de Maria Bonita nunca existiu. Foi um apelido dado pela policia e a imprensa, que se espalhou, mas que nunca chegou aos bandos. Ela era conhecida como Maria, simplesmente, ou Dona Maria de Lampião, como chamavam os seus comandados. Ela era uma pessoa simpática, me dava muitos conselhos sobre as coisas da vida, e lamentava muito a vida de aperreios e perigos que vivia. Chegou a me dizer que eu não devia ter entrado para a vida do cangaço. Aqui prá nós,vez por outra ela também fazia uma fofoquinha. Mas nada que lhe tirasse a grandeza e abalasse a amizade que passei a ter por ela. Chorei muito a sua morte violenta e covarde, pois foi degolada viva, pedindo pelo amor de Deus para não lhe matarem.”
Já morando em João Pessoa, um dia recebo um seu telefonema informando que passava na cidade seguindo para Mossoró, onde no dia posterior iria participar de um evento, a convite do governo do R.G. do Norte. Convidei-a e ela terminou pernoitando em minha casa, na companhia da esposa do cineasta e jornalista pernambucano Fernando Spencer. À tarde saímos, mostrei-lhe o farol do Cabo Branco, as lindas praias paraibanas, jantamos na praia do Poço e por fim fui cobrado por ela sobre uma festa de forró que eu lhe havia prometido hà tempos atrás, na minha propriedade do Carirí paraibano em sua homenagem. “ Sila, disse-lhe eu: Pode marcar a data para o mês de junho, quando você estiver disponível. Só quero que me ligue uma semana antes, que eu vou providenciar tudo. Pode estar certa”.
Quando o carro que a levaria a Mossoró chegou, arrumamos a sua bagagem, nos despedimos, o carro deu partida e, cerca de 30 metros adiante, parou. Ela abriu a porta trazeira e me chamou. Imaginei que houvera esquecido alguma coisa e parara para reaver. Na verdade ela queria apenas falar comigo para me lembrar: “Olhe Roberto, não esqueça de fazer um forrozinho bem pé-de-serra,na sua fazenda como você me prometeu. Bem pé-de-serra mesmo, viu? Do jeito que eu gosto”. “ Fique tranqüila, Sila, disse-lhe. Vou tratar disso”.
Sila então deu-me um aceno pela janela do carro e sumiu na estrada.
Não a ví mais.
Sila morreu no dia 14 de abril de 2005.
SIMPLESMENTE E S P E T A C U L A R!!
Parabéns pelo elaborado e romântico relato. Devo dizer que , como nordestino, também participo dessa ideia romántica de considerar a Lampião um herói, como nosso Hobin Hood do nordeste. Porém a minha avó, que era mocinha na época e morava no interior de Pernambuco me contaba uma história muito diferente: Lampião passava pela sua cidade e ela permanecia escondida muitas horas, pois todos os pais temiam que as suas filhas fossem roubadas ou estrupadas pelos "cabas de Lampião", algo común quando visitavam os povoados! Portanto, meus avós nos falavam de homens rudos e crueis e sem nenhum sentimento patriótico, como imaginamos agora. Não pude seguir o seu bonito relato com a emoção requerida por sentir que se honrava a um falso herói que fez tremer de pánico a minha avozinha! rsrs
Um abraço.
Desculpe-me não pude firmar: Walmir Chaves.
Excelente esse relato da nossa cultura nordestina,parabéns ao autor.
Liz Brito.
Muito boa essa história sobre o mito Lampião,relatado pela cangaceira Sila,parabéns.
Relato comovente, cheio de emoção, do começo ao fim.
Bela análise de um tipo humano que sempre nos pareceu enigmatico, o cangaceiro.
Emoção do começo ao fim. Parabens.
"Quando a lenda se torna maior que o fato, publique-se a lenda " (Jonh Ford, no filme "O homem que matou o facínora" (1962)
Excelente a reportagem.
Por coincidencia eu estive presente na UFCG quando Sila fez uma ótima palestra sendo muito aplaudida e na ocasião lançou seu livro que eu tenho um exemplar. Uma bela historia. Verdadeiro show de bola.
Arnaldo Gomes
Não me parece que o autor tenha desejado considerar Lampião um heroi.
E sim focar toda a sua narrativa, por sinal, espetacular, na figura da ex-cangaceira, e isso foi feito de forma altamente competente e emocionante, acima de tudo.
Carlos José Assalino
Recife
É um privilégio para nós, leitores, termos acesso a um depoimento tão rico como este. Os livros sobre o cangaço, normalmente, se repetem em certo grau, mas este relato de Roberto Pereira nos mostra uma Sila de carne, osso e alma. A descrição da visita de Angicos nos transportou para o local, tal o detalhamento das impressões do autor. Parabenizo a Roberto pela experiência e pelo desapego em compartilhá-la. Como já combinamos anteriormente, Roberto, ainda faremos uma visita a Anjicos juntos.
Um forte abraço.
Danilo Batista Martins
Matéria da mehor qualidade. Texto escrito com emoção e precisão, acima de tudo.
O tema é dos mais apaixonantes porisso que nos prende do começo ao fim.
Seria bom que isto fosse apenas um capitulo de uma série que o autor nos ofertasse.
Alderico L Oliveira
Viagem fantastica,principalmente para quem estuda o fenômeno do cangaço e gosta do tema. Jamais alguém fará mais outra viagem dessas pois todos os personagens, ao que parece, já morreram.A narrativa é simplesmente fascinante, minuciosa, bem articulada e enriquece qualquer biblioteca. Parabens ao blog. Um grande feito cultural.
José Heckel Furtado
Recife-Pe.
PARABÉNS, EXCELENTE!!!
Querido amigo Roberto Pereira:
Acabo de ler o conteúdo e os comentários de sua importante peça literária, tendo nossa amiga Sila como figura fundamental. Apresento-lhe meus cumprimentos e parabéns relembrando com emoção àquela nossa histórica viagem.
O fato de termos ido ao Angico com uma testemunha ocular daquela trágica madrugada que findou com o fenômeno cangaço foi um privilégio. Devo a você esta magnífica oportunidade. Utilizo este espaço para agradecer-lhe de público tê-la vivido. Agradeço-lhe também nosso reencontro após cerca de 30 anos de ausência, assim como minha participação no grupo de estudos do cangaço da Paraíba ao lado dos distintos companheiros.
Abraço, Paulo Marques.
Parabéns por tudo que você relator, Lampião meu herói, embora seja bisneto de senhor de Engenho, sou um forte admirador do rei do cangaso.