As ruas da cidade são janelas que nos mostram diversas histórias, cada lugar descortina seu passado através do cotidiano dos seus habitantes, dos usos que se fizeram e se fazem dos espaços públicos ou privados. Atualmente as novas ruas de uma cidade são antecipadamente nominadas com uma numeração ou ganham o indistinto nome de ‘rua projetada’, até serem oficialmente batizadas, geralmente por projetos de lei na câmara de vereadores. Até nisso os antigos eram mais charmosos e práticos, denominavam de ‘Rua Nova’ aqueles novos logradouros, também temos outros epítetos comuns de cidades antigas como rua direita, oitão da Matriz... Entre o fim do século XIX e início do XX, Campina Grande teve uma Rua Nova, atualmente a conhecemos com o nome do revolucionário de 1817 ‘Peregrino de Carvalho’. Desse passado nos restam, além do traçado, duas casas defronte a Feirinha de Frutas em estilo eclético, as únicas que restaram. Uma delas está bem próxima de não mais existir.
Os ipês enfeitavam Campina Grande em plena primavera de 2016, numa manhã preciosamente ensolarada, tive o peito carregado de coragem pelo calor e ofuscamento de um sol que parecia descer para a altura de cruzeiro. Saí de casa às sete achando que já eram onze, coisas de quem está no alto da Borborema. Visitei um amigo marceneiro que me prestou um grande serviço em adaptar uma prancha de madeira que precisava de um certo reparo. Sabendo de minha predileção pela história da cidade, me confidenciou: “– Sabes aquela casinha antiga bem bonitinha de frente a feirinha de frutas? Vai ser vendida! Acho que vão derrubar”. Mas o que? Impossível! Respondi. A rua Peregrino de Carvalho está exatamente no perímetro do cadastramento do Centro Histórico de Campina Grande (Decreto 25.139 de 28 de junho de 2004) e nada nessa área pode ser modificado. Estava me valendo da operosa desenvoltura do Iphaep (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba) que há pelo menos cinco anos vinha realizando um admirável trabalho sob a direção de Cassandra Figueiredo Dias. Ele retrucou: “– A dona disse que estão negociando e pode ser vendida para uma farmácia, se for vendida você acha que vão botar uma farmácia do jeito que tá? Vão nada, derruba tudo, faz um prédio alto e moderno cheio de mármore”.
Detalhe dos dois prédios que ainda existem - Retalhos Históricos CG
O tempo passou e entre julho e agosto de 2018, iniciou uma reforma que retirou uma “latada” lateral. De imediato denunciamos o fato ao Iphaep, soubemos também que outras denúncias também chegaram ao órgão, que prontamente acionou o proprietário, foi aí que se descobriu que o número 370 da Rua Peregrino de Carvalho havia sido comprado por uma rede de farmácias e que pretendia abrir no local mais uma filial. O Iphaep esclareceu o que significava o tombamento e fui informado que o proprietário garantiu que ia preservar o contexto histórico do prédio e do lugar. A obra foi embargada em 29 de agosto. Na semana seguinte, o prédio aparece com as portas e janelas abertas, tendo início ao saque de seus materiais “mais nobres”, telhas, fiação, apetrechos internos, passaram a ser “levados” por “vândalos”, modus operandi bastante conhecido na cidade. O abandono atrai o saque e joga a opinião pública contra o lugar que vira antro de bandidos e consumidores de droga, enquanto isso, uma demolição pontual segue e o objetivo do proprietário se faz. No dia cinco de setembro de 2018 houve um protesto contra a destruição do patrimônio do município justamente defronte ao prédio, o momento de comoção nacional em torno dos bens históricos se deu devido ao incêndio que destruiu o Museu Nacional três dias antes no Rio de Janeiro.
Professores, estudantes e ativistas culturais protestando contra a destruição do nosso patrimônio
Construída em 1925 compondo a ‘Rua Nova’, a edificação de um pavimento em estilo eclético com elementos decorativos na fachada e detalhes na platibanda testemunhou páginas sensíveis da história de Campina, de suas janelas era possível ver a passagem de animais tangidos que iam na direção de um pátio (onde hoje é a Rodoviária Velha) e eram comercializados, dando àquela rua o singelo nome de ‘Emboca’. Suas cercanias foram habitadas por damas da noite, baixo meretrício informado pelo historiador Fábio Gutemberg. Ao longo de sua história foi residência dos Agra e era ladeada pela conhecidíssima enfermaria de Seu Manoel Barbosa, o enfermeiro do povo. Testemunhou a partir de 1958/59 a construção do Terminal Rodoviário de Passageiros Cristiano Lauritzen, conhecido como Rodoviária Velha após a edificação da ‘Nova’ no Catolé na década de 1980.
Durante esse impactante momento de pandemia que vivemos, com comércio fechado e distanciamento social, ocorre o que eu temia. Na última quarta (6/mai) um tapume alto de zinco foi instalado encostado à fachada, usando-a como suporte e ferindo os detalhes com buracos, obstrução essa que vai de fato esconder a completa demolição da construção, ferindo brutalmente a história do Emboca e da cidade, atitude criminosa feita sorrateiramente em um momento tão sensível. Essa destruição se junta a outras e marca sensivelmente de forma negativa o Centro Histórico da cidade, o que deixaremos para a posteridade?
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