Seria uma visita sentimental de volta às nossas origens; um “revival” em nossas vidas, um reencontro com alguns dos nossos antigos amigos, aquêles que outrora compunham o nosso universo, e com os quais passamos os grandes e alegres momentos da nossa juventude na querida cidade onde nascemos.
Calçadão de Campina Grande (2009) |
Programávamos ir ao Calçadão, passear na rua João Pessoa, tudo isso feito a pé, sem qualquer obrigação com horário, frequentar os restaurantes mais antigos, ir a feira, visitar estabelecimentos comerciais de velhos amigos remanescentes, enfim, passar esses dois ou três dias entregues a uma jornada de re-visita, para matar as saudades.
Infelizmente não deu. O velho “Moral” assim como era chamado, parece que estava adivinhando: antes mesmo de cumprir a nossa programação, adormeceu para sempre.
Na Campina do nosso tempo, morávamos um pouco distantes um do outro: eu, ali na Praça João Pessoa, ele na Major Belmiro, mas sempre estávamos juntos; e juntos compartilhamos as alegrias da juventude e curtimos a nossa querida cidade em tudo o que ela nos concedeu de felicidades.
Nós sempre acreditamos, e sempre conversávamos sobre isso, que foi a nossa geração a que mais viveu os períodos importantes e as grandes mutações pelas quais passou Campina Grande. E foi mesmo.
Eu vivi, na infância, o fim da chamada “era do trem.” Ví pessoas chegando de viagem, outras embarcando, ali na Estação Velha, que se enchia de gente, automóveis, carroças, animais, na maior animação, na chegada ou partida do trem. O seu apito saudoso ficou na minha memória para sempre.
Ví e viví a Rádio Borborema, a primeira grande revolução nas comunicações regionais, com maravilhosos programas de auditório, quando a cidade recebia a visita dos maiores e mais importantes artistas nacionais e internacionais. A cidade era uma festa. A Radio Borborema de Hilton Mota, Gil Gonçalves, Leonel Medeiros, e de Fernando Silveira, um gênio que se hoje vivesse talvez fosse o maior multimídia do nosso País, com a sua incrível inteligência e criatividade.
Ví e viví na infancia as maravilhosas séries semanais do Capitólio: Homem Morcego, Fumanchú, O Zorro, Capitão Marvel, Príncipe Submarino e tantos e tantos mais, quando nós, fantasiados e em bandos, subíamos no palco do cinema antes da exibição, para brincarmos de artista e bandido, até que as luzes se apagassem para a projeção.
Viví toda a alegria de brincar com uma tosca roda de virola, resto de antigos pneus automotivos desmanchados pelos sapateiros, percorrendo as calçadas das praças, com a alegria de uma criança que hoje estivesse pilotando uma moto.
Ví e vivi a chamada “explosão do algodão” subindo e pulando nas imensas pilhas de fardos de algodão que se espalhavam pelas ruas da cidade; e o desfile daqueles grandes carros americanos dos barões do algodão, que enchiam Campina de dinheiro e de orgulho.
Ví e ouvi os maravilhosos discursos do grande líder Argemiro de Figueiredo, sem dúvidas, o maior político do nosso Estado, com sua postura majestosa e seu estilo fascinante de falar.
Ví o presidente Getulio Vargas, cabelos branquinhos, um sorriso permanente, em carro aberto, subindo ali pela Miguel Couto acenando para o povo que se postava nas calçadas.
Ví a cidade em festa recebendo o seu primeiro bispo diocesano, Don Pietrula, desfilando em carro aberto e o povo acenando lenços brancos de boas vindas.
Ví o fenômeno popular chamado Severino Cabral incendiar Campina e ascender ao governo do Estado numa homenagem do povo a simplicidade do seu líder.
Ví, menino ainda, o povo pobre nas ruas numa manhã de agosto, chorando a morte do presidente Getulio Vargas.
Ví o então presidente Juscelino Kubitschek emocionado, entregar a cidade o gigantesco beneficio da adutora de Boqueirão, que, de uma vez por todas, acabou o problema do abastecimento d’agua da cidade.
Juscelino em Campina Grande (1958) |
Chorei a perda de uma linda adolescente, Osmarina, num desastre de avião junto com seus pais, no Estado de Sergipe. Toda a cidade cobriu-se de luto e os colégios formaram no sepultamento.
Viví e reverenciei com o maior respeito os nossos grandes mestres: professor Loureiro, Padre Emidio, professor Oliveira, professor Almeida e tantos mais, responsáveis pela formação de toda a elite intelectual da nossa geração. A gente os recebia de pé, na sala de aula.
Viví grandes partidas de futebol no campo do Bordéu, (ali onde hoje está o Anita Cabral) junto a velhas figuras do folclore campinense: Fuba, Miguelzão, Eliezer, Seu Naninha, Seu Antonio, Nêgo Lula, Chico Boateiro, Ladinha, Nêgo Mira, Bôda, um monte de gente.
Feliz, saía aos domingos em demanda do campo do 13 para assistir as grandes partidas contra times de todo o Brasil, que vinham visitar a nossa cidade. Era uma festa.
Babei de inveja dos mais velhos que falavam dos grandes cabarés que freqüentavam nos fins de semana: Baiana, com shows musicais eróticos de artistas que vinham do Sul. Carminha Vilar, China, Santa, Unidade Moreninha, cujas lindas hóspedes freqüentavam as matinés dos cinemas exibindo roupas caríssimas e maquiagens caprichadíssimas. Maria Garrafada, Zefa Tributino, as lendárias damas da boemía campinense.
Ví, na varanda da fazenda do meu pai, no Carirí, vindo de Campina Grande, um dia chegar Rosil Cavalcante com vários companheiros e uma tropa de cachorros perdigueiros em busca de caçar perdizes e lambús nos campos da caatinga.
Vi a rapaziada independente que se reunia nas tardes do Grande Hotel para o happy hour daquele tempo: Otaviano Bezerra, Paulinho Ribeiro, Amaury Gurú, Zé Costa, Rodrigão Araújo, Antonio Figueiredo, Ingo Neukranz, Ermirio Leite, legítimos representantes de uma época em que a cidade fervilhava com o seu progresso e se projetava inexoravelmente para o seu grande futuro.
Grande Hotel |
Viví os grandes carnavais de rua, com o corso que se expandia por todo o centro da cidade e a folia que se concentrava na Maciel Pinheiro, ali na Sorveteria Pinguim, com desfile de blocos e troças, fantasias mil, o cheiro de lança-perfume no ar, a poeira da maizena que cobria todos os espaços da rua, confete, serpentina, mulheres lindas, a alegria, o delírio.
À noite, os grandes bailes no Campinense, no Clube 31, no Ipiranga, Paulistano. Do mais aristocrático ao mais modesto a alegria era uma só. A cidade estremecia ao som das grandes bandas de frevo e samba e dançava até o raiar do dia.
Ví e conheci os valentes do nosso tempo: João de Carminha, Assis, Severino Martins, Alonso Arruda, Salvino Figueiredo, Carlinhos e José Gaudencio, homens jovens, corajosos que não abriam parada para ninguém.
Ví o mundo intelectual reunido na Livraria Pedrosa e o velho Pedrosa, junto com os amigos, Dante Alicate e Pilon bebericando e contando causos inesquecíveis.
Ví a Fundact, embrião da nossa Universidade ser fundada por um grupo de heróicos campinenses dedicados a causa da cultura em nossa cidade: Edvaldo do Ó, Stenio Lopes, Francisco Pereira, Lopes de Andrade, Lynaldo Cavalcante, verdadeira constelação de homens de valor, devotados ao bem.
Ví a cidade se projetar para muito além dos seus limites no mundo financeiro, com os bancos Industrial e Banco do Comercio, todos com capitais genuinamente campinenses, instalando agencias nas principais cidades e capitais brasileiras.
Ví a Federação das Industrias ser fundada em Campina Grande, por ser a nossa a única cidade da Paraiba a reunir a quantidade de sindicatos exigida para a formação da federação.
Ví e convivi com os tipos populares e inesquecíveis da cidade: o filósofo Alonso Sapateiro, o desenhista, artista e coreógrafo Cibíu, o comunista Alfredo Machinho, grande divulgador das idéias socialistas; o homem da noite Moacir Tiê; Zito Napi, dançarino exímio, disputado a tapas pelas damas da noite; Omega, eterno boêmio a desfilar nos carnavais com sua capa, bengala e copo de cerveja na mão; Abilio Doido, Bacurau, Antonio Cego, Manuel Pé de Rotor, Horacio Bacanaço, uma fauna maravilhosa que conferia a cidade esse aspecto de alegria e criatividade insuperável.
Viví a adolescência entre as matinês do Capitolio e Babilonia, a Rua Maciel Pinheiro e a Sorveteria Pinguim, onde as tribos se encontravam; e nos fins de semana os maravilhosos “assustados”, encontros em casa de amigos, onde imperavam a alegria e a esperança fácil.
Rua Maciel Pinheiro |
Viví as noites inesqueciveis de dezembro assistindo às missas de Padre Mariano na Matriz e em seguida descendo a Floriano Peixoto para o passeio deslumbrante nas noites de festas do Natal, ali na Maciel Pinheiro.
Ví surgirem os primeiros edifícios espigões, que davam a cidade um ar de “cidade grande”.
Viví momentos de angustia e tristeza com a queda de um avião nas proximidades de Bodocongó, onde morreram queridos conterrâneos.
Viví a alegria do Bar do Grande Hotel, do Pinguim, e do Chopp do Alemão, em fins-de-semana memoráveis com as inesqueciveis “tertúlias” do Campinense Clube e as prévias carnavalescas do Club Aquático.
Viví as delícias, tomei bons whiskys e evoquei o passado na lendária “Fruteira”, barzinho maravilhoso que um dia as irmãs Pedrosa, rebatizando-o de “O Beco” resolveram reviver, ali no Beco do 31.
Viví com intensidade as emoções dos sábados da boite Skina: música estimulante, corações a toda carga.
Viví as festas do São João no Clube dos Caçadores curtindo a beleza daquelas noites frias de junho onde a juventude se aquecia nas fogueirinhas e nos abraços de amor.
Viví o privilégio de ouvir o velho Nilo Tavares, depois de alguns whiskys no Bar do Pilon, contar suas histórias de vida e seduzir com a sua prosa fácil e espirituosa a quem dele tinha o privilégio de se aproximar.
Precisa mais?
Assim eu ainda vivo e continúo vendo a minha querida cidade. Será que alguém a viu ou viveu em tantos diferentes momentos e com tanta intensidade, com tanta intimidade?
Viví e ainda vivo finalmente, a amargura das perdas de tantos amigos que, tal qual atores de uma magestosa peça teatral, vão-se retirando do palco aos poucos, um por um, até que, no último ato, certamente por falta de atores, a cortina haverá de se fechar e as luzes se apagarem.